Sou muito paciente. Posso Aguentar uns dez anos para fazer um filme.”

 

Realizador do estrondoso “Une jeunesse allemande”, Jean-Gabriel Périot regressa ao IndieLisboa com o seu mais recente filme “Retour a Reims [Fragments]”, um documentário baseado no livro de Didier Eribon, caracterizado como parte “autobiografia”, parte “reflexão sociológica”. 

Um livro que faz um percurso sobre o século XXI em França, dos tempos nazis até hoje, momento em que a extrema-direita conquistou para as suas fileiras parte significativa da classe trabalhadora, que normalmente votava mais à esquerda. Com a narração da atriz Adele Haenel, “Retour a Reims [Fragments]” é uma visão muito particular e desprendida do material original mostrando um cineasta que no seu trabalho aborda frequentemente a violência e a História, sempre com um olhar de fascínio pelo arquivo. 

Foi em Cannes no ano passado que nos sentámos com ele e falámos deste “Retour a Reims [Fragments]”, estreado na Quinzena dos Realizadores, e também do seu novo projeto, “Facing Darkness”.

 

Como chegou até este “Retour a Reims [Fragments]” e o que o levou a avançar com ele?

A chegada deste projeto até mim foi um pouco fortuita. Porém, quando me chegou às mãos eu estava num momento em questionava muita coisa sobre mim: o trabalho, o meu lugar no mundo, etc. Cheguei a esse estado depois de dois filmes que fiz: a curta-metragem “De la joie dans ce combat”, sobre um coro, e a longa-metragem “Nos défaites“, em torno de alunos do liceu. As questões que coloquei nesse filme despertaram em mim várias demandas sobre o meu lugar e posição social. 

O “Regresso a Reims (Fragmentos)” chegou-me através da produtora Marie-Ange Luciani. Já tinha lido o lido, mas li novamente e tudo o que o Didier conta teve uma enorme ressonância na minha vida, oferecendo-me a hipótese de eu mostrar uma parte de mim próprio; o onde nasci, de onde venho. Era uma obra que fez-me questionar sobre esses temas, mesmo que isso não apareça no filme.

Logo no início abordamos um tema particularmente sensível em França: o colaboracionismo durante a Segunda Guerra Mundial, a libertação e as “tosquias” impostas às mulheres. O quão importante foi tratar desse tema e como preparou a sua apresentação no filme?

O Didier escreve a partir da sua própria mãe. Esta tem uma enorme importância para a construção do seu livro. Eu venho de uma família muito feminina e dentro da História da classe trabalhadora há algo que me toca e sensibiliza muito. O facto das mulheres sofrerem uma dupla forma de opressão, ou seja, como trabalhadoras e como mães. 
Um dos pontos simbólicos indicadores de que existe um problema social, onde as falhas da sociedade encontraram nas mulheres o bode expiatório, foi no caso da libertação dos nazis e as “tosquias”. Elas foram responsabilizadas pela derrota do homem francês, do soldado e do estado.

Falou à pouco que vem de um seio familiar muito feminino. Acha que isso moldou a sua forma de trabalhar e a sua visão sobre as coisas? Influenciou o seu cinema?

Não sei… para mim surge tudo de forma muito natural. Há certamente coisas que vêm da minha infância, mas não sei como as traduzir. Talvez. Sempre tive muita dificuldade em entender o sexismo e o machismo. Quando vens de uma família repleta de mulheres é muito complicado entender porque são sistematicamente diminuídas pela sociedade.

A organização em capítulos também existe no livro, mas no filme é diferente. Como engendrou essa nova organização?

O livro vem compartimentado em muitos capítulos, onde cada um deles passa de um tema para outro. Segui também capítulos, mas não da mesma forma, até para que as pessoas não pensassem que iam ver uma continuação do mundo do livro. Essa organização que apresento é uma montagem minha a partir texto original, que forçosamente não é linear.

Um dos elementos que chama a atenção no documentário é a voz de Adele Haenel, aa narradora. Como chegou até ela?

A ideia da sua participação surgiu logo na primeira conversa que tive com a produtora. Para mim era uma evidência que não queria uma voz que se ligasse ao autor, o Didier, um homem maduro. Queriam uma jovem, alguém que permitisse abrir o texto, o qual não é totalmente universal mas partilhável entre muita gente. Há algo que gosto muito na voz da Adele, algo de popular, como se funcionasse como voz da sua geração. Voz essa que é política dentro da paisagem francesa. 

Apesar deste filme ter um fundo muito francês, tem vários temas (como a expansão da extrema-direita) que afetam outros países. Como vê percurso do filme fora de portas?

Hoje em dia é sempre um mistério entender onde é que um filme vai ressoar. O que aprendi com os outros projetos que lancei é que as histórias não podem estar muito territorializadas, devendo jogar com outras formas. Neste caso, e pegando no caso da extrema-direita, mesmo que o fundo nacional seja francês, isso não é uma especificidade nossa. Creio que acima de tudo é uma história ocidental.

O meu filme “Une jeunesse allemande”, que está muitíssimo inserido dentro da História da Alemanha, teve um grande percurso internacional. Como aborda o ato de resistir, ganhou logo uma identificação global. Qualquer país num determinado momento teve de passar por isso.
Falando agora do futuro, sei que tem um novo projeto, “Facing Darkness”, que apresentou nas sessões de Pitching do Visions du Réel em 2021. Pode falar-nos um pouco sobre ele?

Sim, é um projeto que acompanha um grupo de homens, entre 18 e 25 anos, que tinham de responder às suas obrigações militares. E vêm de vários registos, ou seja, uns foram obrigados, outros voluntários, e existem mesmo alguns que tentam evitar o serviço militar e criam estratégias para o efeito. O que os junta é que todos se filmaram durante a guerra [durante o cerco de quatro anos de Sarajevo], seja como registos para eles, seja para o próprio exército. Na primeira parte do documentário junto muito trabalho de arquivo, com todas as imagens que fizeram. Na segunda parte falo com eles sobre a sua experiência militar e a necessidade, o desejo de filmar que tiveram naquele período. Esse ato de filmar, naquelas circunstâncias de violência extrema, fez-me questionar muito qual a razão pela fazemos filmes. Para mim é algo misterioso.
E o Jean, porque filma?

(longa pausa) Bem… primeiro filme porque gosto disso como trabalho. Trabalho técnico, como realizador. E existe por vezes um secretismo em torno de um projeto onde se criam relações de amizade. Por exemplo, os homens que encontrei e filmei neste projeto, se não fosse o filme, nunca me cruzaria com eles. 

Além disso, gosto de criar coisas partilháveis, sejam do ponto de vista político ou histórico, entre outros temas.

E existe ainda algum projeto que gostaria de fazer mas não consegue? Seja pela dificuldade ou financiamento…

Todos os projetos são difíceis (risos). Até agora o único filme que não consegui fazer era a adaptação de um romance cujos direitos foram comprados. Por tal, não fiz o que desejava. Até agora, o filme em questão nunca foi feito, por isso talvez um dia possa adquirir esses direitos. Sabe, sou muito paciente e posso aguentar uns dez anos para fazer um filme.

 

Jorge Pereira Rosa
C7nema
27 de abril, 2022
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